Planejamento estratégico financeiro: quando o conselho não vê, a empresa paga para ver

Por: Dercio Carvalhêda 21 de fevereiro de 2025

Quantas crises empresariais poderiam ter sido evitadas se o conselho tivesse feito as perguntas certas? O que acontece quando o planejamento financeiro é apenas um ritual burocrático e não um compromisso real com o futuro da empresa?

Nenhuma empresa sobrevive sem um planejamento financeiro sólido. Pode resistir temporariamente sem lucro, sem clientes ativos e até sem um plano claro de crescimento, mas nunca sem controle financeiro estruturado.

Muitas empresas constroem seus planejamentos olhando apenas para trás, projetando o futuro com base no desempenho passado. Como nas palavras de Roberto Serer, durante a exposição sobre Finanças para Conselheiros, durante o PFCC da Board Academy Br, um bom orçamento é como dirigir um carro: olha-se 30% do tempo para o retrovisor e 70% para o para-brisas, ou seja, deve-se atentar para o passado, mas o olhar principal é no futuro. E o papel do conselho é justamente o de garantir essa lógica

É o planejamento financeiro que diferencia organizações resilientes das que sucumbem a crises. E esse planejamento nada mais é que a capacidade de antecipar cenários e alinhar decisões financeiras à estratégia corporativa. Garantir um bom planejamento é um dos papéis do conselho de administração: garantir que as escolhas sejam embasadas em dados, riscos bem calculados e visão de longo prazo.

Quando isso não acontece, o mercado dá o recado e a conta sempre chega. Como o conselho pode garantir que essa função seja exercida sem cair em armadilhas, como otimismo irreal, pessimismo exagerado ou foco excessivo no curto prazo?

O Conselho Como Guardião da Estratégia Financeira

Muitas empresas quebram não por falta de faturamento, mas por falta de liquidez. O dinheiro não entra no caixa no ritmo esperado, os compromissos vencem e, quando se percebe, não há capital suficiente para manter a operação.

O conselho não deve gerir o dia a dia financeiro, mas sim garantir que as regras do jogo estejam claras, sejam seguidas e revisadas regularmente.

O conselho e a saúde financeira da empresa

O conselho deve reunir conhecimentos distintos, essa é a grande vantagem de um órgão colegiado. Já um conselheiro, individualmente, não precisa ser especialista em finanças, marketing ou compliance, mas deve saber fazer as perguntas certas e como avaliar as respostas da gestão.

Assim ter um olhar consciente sobre indicadores-chave e um compromisso com a disciplina estratégica é fundamental. E isso, qualquer conselheiro, independentemente de sua expertise-chave, deve saber responder.

O planejamento financeiro deve responder perguntas estratégicas, como:

  • A empresa vai investir nas áreas certas?
  • Haverá liquidez suficiente para sustentar o crescimento planejado?
  • Os riscos financeiros estão sendo monitorados e mitigados? A empresa está preparada para oscilações econômicas?
  • O orçamento reflete as prioridades estratégicas ou apenas replica números do passado?

Portanto, esses são os principais pontos que devem estar na pauta do conselho:

Quando essas questões não são analisadas de forma crítica, e o conselho não age proativamente, as consequências podem ser desastrosas. E temos vários exemplos disso na história.

O caso Americanas: quando o conselho não pergunta, o problema explode

O caso Americanas é um exemplo clássico do que acontece quando o conselho não exerce seu papel de vigilância estratégica. Em janeiro de 2023, a empresa revelou um rombo de R$ 20 bilhões, resultado de inconsistências contábeis ligadas a operações de risco sacado.

O ponto central não é apenas uma possível fraude ou má gestão financeira (ainda sob julgamento), mas sim a ausência de questionamento explícito sobre um aspecto crítico: como a empresa mantinha margens saudáveis e fluxo de caixa equilibrado, enquanto escondia um passivo crescente?

O que poderia ter sido feito?

  1. Acompanhamento mais rigoroso das práticas contábeis – conselheiros devem entender as demonstrações financeiras e questionar padrões fora do normal. Não podem alegar desconhecimento.
  2. Monitoramento de alavancagem e liquidez – dívidas estruturadas são um alerta vermelho para qualquer organização. Ainda mais quando se, em tese, são usadas para mascarar passivos – isso pode ser considerado crime.
  3. Cruzamento de informações entre auditoria, gestão e conselho – falhas graves não acontecem da noite para o dia; sempre há sinais. E esses sinais não desaparecem como mágica.

A lição é clara: quando o conselho não pergunta, a empresa paga para ver – e, nesse caso, o preço foi a recuperação judicial e a destruição de valor de um dos maiores grupos varejistas do país.

Como o conselho pode evitar erros estratégicos?

Como dito, a ideia não é que todos os conselheiros sejam especialistas em finanças, mas sim que saibam fazer as perguntas certas e interpretar os sinais. Algumas reflexões ajudam a estruturar essa análise. Reparem que são perguntas olhando-se para o passado e para o futuro:

  • O orçamento da empresa reflete as reais prioridades estratégicas?
  • Os investimentos projetados fazem sentido dentro do cenário de mercado?
  • Há indicadores claros que mostram a viabilidade das metas financeiras?
  • Existe um plano de contingência caso os números não saiam como esperado?

O acompanhamento de métricas como fluxo de caixa, alavancagem, retorno sobre investimento e liquidez permite decisões mais seguras e evita surpresas desagradáveis.

E há vários casos na história que comprovam que um conselho ativo, junto com a direção ou até mesmo à revelia da direção, salva a empresa ao determinar o seguimento da estratégia. Vamos a dois deles.

O caso Ford: quando o entrosamento entre conselho e direção salva

Em 2006, dois anos antes da crise financeira que abalaria o setor automotivo, a Ford Motor Company já enfrentava dificuldades. A empresa vinha acumulando prejuízos bilionários e perdendo competitividade para rivais como Toyota e Honda.

Diante desse cenário, o conselho de administração tomou uma decisão ousada: aprovar um plano de financiamento massivo antes que o mercado de crédito entrasse em colapso. O que o Conselho fez?

  1. Mudou a liderança: o conselho entendeu que era preciso uma nova visão para a empresa e contratou Alan Mulally, ex-executivo da Boeing, para assumir como CEO.
  2. Estratégia ousada da nova liderança: em 2006, dois anos antes da grave crise financeira de 2008, O Conselho de Administração da Ford, apesar de forte resistência interna à ideia, aprovou uma grande operação de financiamento que levantou US$ 23,5 bilhões, colocando praticamente todos os ativos da empresa como garantia, incluindo a icônica marca Ford. Na época, essa decisão foi vista como arriscada, pois a empresa ainda tinha fôlego financeiro. Mas isso se revelou crucial para sua sobrevivência.
  3. Quando a crise chegou em 2008 e o crédito desapareceu e as taxas de financiamento encareceram, a Ford já tinha liquidez suficiente para continuar operando sem precisar do socorro governamental, diferentemente de suas concorrentes.
  4. Focou na reestruturação: Além disso, o CEO Alan Mulally, que havia sido contratado em 2006 e fora responsável pela ideia acima, implementou um plano de reestruturação que melhorou a eficiência e preparou a empresa para a recuperação.

O Resultado?

Enquanto outras marcas tiveram que recorrer a bailouts do governo americano para evitar a falência em 2008, a Ford não precisou desse resgate financeiro. Na verdade, a empresa saiu da crise como a única grande montadora americana que sobreviveu sem intervenção estatal, preservando sua reputação e seu valor de mercado e em 2009, enquanto as demais montadoras ainda estavam em recuperação, a Ford já registrava lucros bilionários novamente.

Caso IBM (1993): o conselho salvando a empresa com uma estratégia financeira

Nos anos 80 e início dos anos 90, a IBM era considerada gigante, mas ultrapassada. A empresa estava presa a um modelo de negócios obsoleto focado em mainframes, enquanto concorrentes mais ágeis, como Microsoft e Intel, avançavam no mercado de PCs. Resultado? A IBM registrou o maior prejuízo da história corporativa americana até então: US$ 8 bilhões em 1993.

A administração da época insistia em manter a empresa no mesmo caminho, mas o Conselho de Administração via diferente e percebeu que a IBM estava indo para o colapso e tomou a decisão radical de mudar a estratégia financeira da empresa.

O que o Conselho fez?

  1. Determinou a mudança da liderança: a liderança anterior que defendia um modelo ultrapassado e resistia às mudanças necessárias, foi substituída por Lou Gerstner, ex-CEO da RJR Nabisco e especialista em reestruturações, já que um choque de gestão era necessário.
  2. Mudou o modelo financeiro e operacional, passando de uma empresa de hardware puro, vendendo mainframes e para focar em software e serviços corporativos, criando uma nova fonte de receita estável e altamente lucrativa.
  3. Determinou uma reestruturação financeira severa, com cortes drásticos de custos, eliminação de unidades deficitárias. Vendeu, ainda, ativos não estratégicos para gerar caixa rapidamente.
  4. E a cereja no bolo: o Conselho apoiou um grande investimento e criou a IBM Global Services, que passou a gerar receitas recorrentes e sustentáveis. Esse movimento foi um dos pilares que, anos depois, permitiria à IBM se tornar uma das líderes em serviços tecnológicos e infraestrutura de TI, antecipando tendências que evoluíram para o que hoje conhecemos como cloud computing.

O Resultado?

A IBM saiu de uma crise financeira profunda e voltou a ser lucrativa em poucos anos. O foco em software e serviços transformou a empresa e garantiu décadas de estabilidade financeira. Em outras palavras, inicialmente o Conselho de Administração e depois esse junto com Gerstner evitaram que a IBM seguisse o destino de outras gigantes da época que desapareceram, como a Digital Equipment Corporation (DEC).

O planejamento financeiro como diferencial competitivo

Os casos acima mostram que um conselho forte não é apenas aquele que aprova decisões, mas aquele que desafia a gestão de forma construtiva e antecipa problemas antes que se tornem crises. O diferencial de um conselho de alto impacto está na capacidade de equilibrar supervisão e visão estratégica, garantindo que o planejamento financeiro seja uma ferramenta viva e alinhada ao futuro da empresa.

As empresas que tratam finanças apenas como um departamento de suporte costumam pagar caro por isso. O planejamento financeiro precisa estar na pauta do conselho de forma contínua, com análises estratégicas, revisão de riscos e decisões embasadas.

O caso Americanas mostrou o que acontece quando o conselho confia cegamente sem questionar. Mas, como visto nos demais exemplos acima, empresas que ajustaram seus planos a tempo, revisaram estratégias e garantiram crescimento sustentável mesmo em períodos de crise.

E em todos os casos o papel desempenhado pelo Conselho de Administração foi fundamental.

No fim das contas, o recado é claro: planejamento financeiro não é só um exercício de projeção – é um compromisso estratégico. E esse compromisso começa no Conselho, que precisa ser ativo, perspicaz e capaz de usar todo seu conhecimento para criar valor e evitar riscos.

Publicado em: 21 de fevereiro de 2025 por