Em ambientes em que a performance justifica tudo e o discurso ético é apenas decorativo, a governança se transforma em fachada — e a cultura, em ferramenta de controle.
Quem tem filhos pequenos (ou cresceu nos anos 90) conhece bem o mundo Pokémon. Criaturas selvagens são capturadas, treinadas para lutar, obedecer a ordens e retornar à pokébola ao final da batalha — seja vencendo, seja desmaiando.
O treinador dá as ordens, coleta insígnias, segue adiante. E os pokémons?
Apanham. Tentam de novo. Sorrindo, claro — porque, segundo a lógica do desenho, eles “gostam de lutar”. Está no instinto. É o seu papel. E se não servem para a luta? São substituídos.
No desenho infantil, ok, vamos dar essa licença poética para uma imagem que carrega a admiração de muitos há 3 décadas.
O problema é que esse modelo se parece com o que acontece dentro de muitas empresas.
Cultura forte ou obediência disfarçada?
Quantas vezes já vimos equipes inteiras treinadas para dizer sim? Para “abraçar a cultura” sem questionar, sem pausa, sem pensar? Para ir à luta enquanto os “Ashes” ficam apenas manobrando e escolhendo aqueles que seguirão e os que serão substituídos por outros?
E quantas culturas ditas fortes são, na prática, estruturas de comando e controle com um bom marketing institucional que consegue convencer até os mais críticos?
Uma cultura não se mede pela adesão forçada pelo medo — mas pelo espaço dado à verdade. E isso se faz, acima de tudo, pelo exemplo.
A verdadeira cultura não está na sala de reuniões. Está no saco de pokébolas espalhados nos departamentos das empresas.
A cultura que realmente agrega, seja ela qual for, é a que o “Ash” é o primeiro a ir para a porrada, a encarar o seu limite, a abraçar o propósito, a estabelecer e cumprir a missão. É quem vai seguir os princípios com vistas a tornar a visão da instituição palpável, ao alcance de um simples “raio do trovão”.
Líderes que apertam botões
Em muitas organizações, liderar virou saber a hora de apertar a pokébola. Se o time não entrega, troca-se o colaborador. Ou pior: rotula-o de “desalinhado com os valores”, “fora da cultura”.
A estratégia não muda.
O discurso permanece.
Só o Pokémon muda.
Enquanto isso, o dirigente segue em frente, com insígnias no peito, bônus garantidos e em busca de mais uma batalha para “aprender” com outro treinador de pokémon.
Compliance simbólico e o teatro da integridade
PowerPoints com “missão, visão e valores” emocionam plateias.
Mas se, na prática, o que vale é o resultado a qualquer custo, não há cultura. Há teatro.
Compliance que só funciona quando há holofote, código que só serve como marketing, e ética usada como escudo — não como guia.
Nesse modelo, a pokébola é invisível, mas real: é o lugar onde se guarda quem questiona.
E o conselho?
Cabe ao conselheiro — e ao advisor — romper a estética e enxergar o que realmente está acontecendo.
Não basta ouvir os números. É preciso observar os silêncios.
A boa governança não se faz apenas com estrutura, comitês e organogramas. Ela se revela no cotidiano: no exemplo, na coerência e na coragem de enfrentar o que não está nos relatórios.
O conselho que finge não ver é cúmplice da luta desigual. E, ainda que realmente não veja, é porque não está fazendo as perguntas certas.
O advisor que não provoca reforça a lógica do treinador que só quer mais um pokémon para a próxima batalha — e do dirigente que terceiriza os fracassos, mas se apropria dos sucessos.
Em todos esses casos fica apenas uma questão completamente contrária a liderança correta: os fracassos são da equipe, mas o sucesso é do dirigente. E troca-se o Pokémon.
Bônus, insígnias e os incentivos silenciosos
Premiar desempenho é natural, salutar, necessário.
Mas os prêmios não podem estar atrelados exclusivamente ao resultado. O comportamento não pode ser ignorado. Não se pode colocar a empresa a nadar como um golfinho, que sobe, respira, salta e afunda.
Num jogo assim, ganha quem manipula, quem atropela e quem finge. Mas ganha por quanto tempo? E a custa de quem?
E os valores? Viram discurso de onboarding — e só.
Empresas são feitas por pessoas.
E são moldadas pelos incentivos que criam, pela forma como lidam com o erro, pela honestidade com que tratam o poder e pelo exemplo que os líderes dão.
Governança não é sobre controle. É sobre confiança.
E confiança exige cultura viva, ética praticada e liderança que não troca de Pokémon a cada revés — mas que assume responsabilidade real por cada escolha.
Discurso bonito e vazio precisa ser evitado. E a violência simbólica do ambiente não pode ser mascarada. Do contrário, o resultado será sempre o mesmo:
Gente ferida. Confiança abalada. Dirigentes aplaudidos — com suas insígnias, seus bônus…
… e uma pokébola vazia… o pokémon voltou para a natureza, ou melhor, deixando claro, o colaborador bem qualificado foi buscar outro treinador.Dércio Carvalheda Júnior é conselheiro, advogado e especialista em governança, riscos e integridade corporativa. Já liderou investigações internas, reestruturações de compliance e treinamentos de alta liderança. Hoje ajuda empresas e conselhos a tomar decisões difíceis — com estratégia, cultura e ética real.