Imagine um futuro em que nossos clubes do coração sejam referências mundiais, mas sem perder o DNA que os torna únicos. Será que esse futuro brilhante pode custar o vínculo emocional com o time que acompanhamos desde crianças? Esse é o desafio das SAFs.
Não é só futebol. No Brasil é uma paixão que pulsa nos estádios, nas ruas, nas conversas do dia a dia…
Com a chegada das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs), estamos testemunhando uma mudança que pode transformar a gestão do futebol profissional no Brasil. Inspiradas por modelos de sucesso na Europa, têm como objetivo resgatar clubes endividados profissionalizando a gestão, a governança e o compliance. Isso cria condições para a atração de melhores investimentos e, por consequência, eleva o nível técnico das equipes e das competições.
Com foco na profissionalização e atração de investimentos, as SAFs estão elevando o nível técnico das competições e criando um padrão no futebol brasileiro.
Mas será que essa modernização pode colocar em risco a essência que torna o futebol brasileiro tão único?
O que as SAFs trazem ao futebol brasileiro?
O modelo das SAFs surge como uma alternativa para solucionar crises financeiras históricas, modernizar a gestão e alinhar os clubes aos padrões globais de governança. Os resultados já começam a aparecer. Vamos a alguns poucos exemplos?
Botafogo: O renascimento de uma estrela
Poucos clubes passaram por uma virada tão impactante quanto o Botafogo de Futebol e Regatas . Depois de anos lutando contra dificuldades financeiras e esportivas, o clube se transformou sob o comando de John Textor. Dívidas foram reestruturadas, contratações estratégicas elevaram o nível técnico, e a paixão da torcida foi reacendida. Em 2023, o Botafogo liderou grande parte do Campeonato Brasileiro, e, agora, além de liderar a maior competição brasileira, o Glorioso vai disputar a final da Copa Libertadores da América.
Além do campo, o Botafogo começou a investir em infraestrutura, com planos ambiciosos para modernizar o Estádio Nilton Santos e tornar o clube uma marca global. Hoje, é difícil imaginar um cenário tão positivo sem a SAF.
O sucesso de sua SAFs trouxe ao clube uma maior visibilidade internacional, consolidando parcerias comerciais e de marketing, como as com marcas esportivas e de tecnologia.
Cruzeiro: um azul ainda mais celeste
O Cruzeiro Esporte Clube – SAF enfrentou a maior crise da sua história: dívidas impagáveis, rebaixamento e um cenário de caos. A chegada de Ronaldo Nazário mudou esse panorama. O clube voltou à Série A em 2022, após anos de frustrações e iniciou um processo de reconstrução que colocou a transparência financeira como prioridade.
Ronaldo não trouxe só sua experiência como jogador de renome mundial e empresário de sucesso; ele focou numa visão empresarial focada em sustentabilidade, reduziu as dívidas drasticamente e reestruturou o elenco promovendo novos jogadores.
O foco em gestão responsável e transparência foi essencial para reconquistar a confiança da torcida e dos investidores.
Em 2024, ele vendeu a parte de suas ações para o empresário e torcedor apaixonado Pedrinho Lourenço, consolidando o modelo SAF como uma estratégia de longo prazo. Nessa negociação, segundo reportagens, ele obteve um excelente lucro.
Fortaleza: o Leão ruge forte
O caso do Fortaleza Esporte Clube é particularmente interessante. Em setembro de 2023, os sócios do clube aprovaram a transformação em SAF, inspirando-se no modelo do FC Bayern München. Diferentemente de outras SAFs brasileiras, o Fortaleza manteve 100% do controle acionário com a associação, sem vender ações a investidores externos.
Essa estratégia visou profissionalizar a gestão e atrair investimentos por meio de governança transparente e profissional, sem comprometer a identidade e o vínculo com a torcida.
Essa mudança de gestão trouxe imediatas melhorias ao centro de treinamento, desenvolvimento da base de atletas e melhoria geral na estrutura do clube. Isso, por si só, ressalta o aspecto positivo que uma SAF pode trazer mesmo se realizada sem venda de ações.
Além desses exemplos, outros clubes também estão se destacando neste cenário, mas de outras formas e com consequências diversas.
Vasco: a volta de um gigante
Já o meu clube do coração, Club de Regatas Vasco da Gama, por exemplo, firmou uma parceria com a 777 Partners, que adquiriu 70% das ações da Vasco da Gama SAF. No entanto, em maio de 2024, após iniciativa tomada pela nova diretoria do clube associativo, a Justiça suspendeu o contrato firmado e devolveu o controle do futebol ao Vasco, por diversas razões noticiadas à época.
A decisão da diretoria do associativo do Vasco se mostrou acertada. Notícias de envolvimento da 777 com fraudes, questões criminais e de sérios problemas financeiros começaram a ser veiculadas em todo o mundo.
Atualmente, o clube, a SAF e a seguradora A-CAP que detém o controle da 777 (cuja diretoria anterior foi afastada após uma série de processos e notícias nos Estados Unidos) buscam um novo parceiro para adquirir as ações da SAF que pertenciam à 777 e a parte que não integralizada.
Como torcedor apaixonado do Vasco, foi doloroso ver as dificuldades enfrentadas pelo clube nos últimos anos. Mas, ao mesmo tempo, a iniciativa da nova diretoria do associativo trouxe esperança de um futuro melhor. Essa busca por equilíbrio entre resgatar a tradição e atrair um novo parceiro é algo que todo torcedor vascaíno está acompanhando de perto.
Quando a modernização vira desconexão
Enquanto clubes como Botafogo, Cruzeiro e Fortaleza encontram o equilíbrio entre tradição e modernização, outros enfrentam desafios que levantam um alerta para o futuro do modelo SAF.
Red Bull Bragantino: e a Massa Bruta, como fica?
O Red Bull Bragantino o é um exemplo claro de como as SAFs podem transformar um clube em termos esportivos, mas também de como podem gerar desconexão com os torcedores tradicionais.
Antes da aquisição pela Red Bull, o clube era conhecido como Clube Atlético Bragantino e possuía uma forte identificação com a cidade de Bragança Paulista. Com a chegada da Red Bull, o clube adotou um novo nome, escudo e cores. Isso o distanciou de sua identidade original.
Embora o projeto tenha trazido grandes avanços, como a conquista da Série B em 2019 e a participação em várias competições internacionais importantes, muitos torcedores antigos se sentem desconectados. Muitas pessoas enxergam o Bragantino como uma “franquia” da Red Bull, mais voltado para os objetivos comerciais da empresa do que para o orgulho da comunidade local. É o tipo de transformação que levanta um alerta para outros clubes: como crescer sem perder a essência? Vale a pena esse tipo de crescimento?
O dilema da identidade
A profissionalização trazida pelas SAFs é inegável, mas até que ponto o distanciamento dos modelos associativos, historicamente ligados às comunidades e aos torcedores, pode prejudicar a relação emocional com o clube?
O que acontece quando o clube deixa de ser o “time da cidade” e se transforma em uma marca comercial global? No Brasil, onde o futebol é herança, é PERTENCIMENTO, essa transformação pode gerar desconexão?
Na Europa, exemplos como o Red Bull Salzburg e até mesmo o Paris Saint-Germain mostram os extremos do modelo de governança: de um lado, o sucesso esportivo e financeiro, e, de outro, a percepção de um clube desconectado de sua essência. No Brasil, a ligação entre clube e torcedor é profundamente enraizada e qualquer alteração drástica na identidade pode causar resistência.
O risco é real?
Como em quase tudo na vida, a resposta é: depende.
O risco de perda de identidade é mais moderado no Brasil do que na Europa, mas ele existe. Na Europa o futebol é um negócio consolidado; no Brasil ele transcende o campo: é uma extensão da identidade comunitária e familiar.
A cultura do torcedor brasileiro é visceral e centrada no PERTENCIMENTO, o que tende a frear mudanças radicais. Assim, decisões que priorizem interesses comerciais, como mudanças de nome, escudo ou localidade, podem alienar torcedores e criar uma desconexão emocional.
Casos como o do Red Bull Bragantino levantam essa questão: a modernização trouxe benefícios esportivos explícitos, mas a relação com os torcedores mais antigos não foi preservada. Por outro lado, o Cruzeiro, Fortaleza e Botafogo e até mesmo o Vasco (apesar de todos os problemas com a antiga parceira na SAF), após sua reestruturação, parecem estar se recuperando e aumentando o apoio da torcida ao reverter um período de crise profunda.
Conclusão
As SAFs são, sem dúvida, uma oportunidade para o futebol brasileiro alcançar novos patamares de desenvolvimento e competitividade. Entendo que é o futuro do esporte, principalmente do futebol, contudo, é necessário um equilíbrio entre modernização e tradição. Regulamentações e a participação ativa de torcedores podem garantir que os clubes mantenham suas raízes históricas.
Na prática, o risco de perda de identidade é pequeno, mas não desprezível, depende de como ocorra o processo de venda e o quê a controladora da nova SAF pode mudar. Esse risco pode ser mitigado com governança transparente e estratégias que respeitem o DNA dos clubes. Afinal, torcer pelo time do coração é muito mais do que assistir a um jogo: é viver uma experiência cultural, social e, acima de tudo, emocional e familiar.
As SAFs podem ser a ponte entre o passado glorioso e um futuro promissor, mas precisam ser construídas com pilares de governança e respeito às tradições.