Discórdia estratégica: o valor da divergência na tomada de decisão corporativa

Por: Dercio Carvalhêda 19 de fevereiro de 2025

“Se todos estão de acordo, proponho adiar a decisão para a próxima reunião para gerar alguma discórdia e talvez entender melhor o problema.” – Alfred Sloan, ex-presidente da General Motors. Essa citação foi trazida pelo brilhante @Varnei Campos, durante sua aula sobre Planejamento Estratégico, Gestão de Riscos e Tomada de Decisão, no PFCC da @Board Academy.

A frase de Alfred Sloan escancara um princípio essencial da boa governança e gestão estratégica: o consenso absoluto pode ser um sinal de pensamento grupal e, consequentemente, um risco à qualidade das decisões.

E o que é um pensamento grupal? Pensamento grupal é um fenômeno em que a busca por consenso dentro de um grupo leva à supressão de opiniões divergentes, resultando em decisões pouco questionadas e, muitas vezes, falhas.

Já participou de um grupo de mensagens em que, ao discutir política ou futebol, quem discorda do que está sendo escrito se sente inibido em se posicionar? Não é que todos do grupo pensem igual, mas o grupo dominante – nem sempre o maior, mas o mais barulhento – acaba criando essa impressão. Esse é um exemplo claro de pensamento grupal em ação.

Quando trazemos isso para um ambiente corporativo complexo, onde as decisões devem equilibrar objetivos estratégicos, gestão de riscos e eficiência operacional, a ausência de contrapontos pode indicar que aspectos críticos não foram devidamente analisados ou até mesmo considerados. Muitas empresas falham não por falta de planejamento, mas por falta de questionamento.

Essa ideia não se aplica apenas ao setor privado. Vivi, na pele e durante uns anos, algo semelhante quando ainda estava na ativa como delegado da Polícia Federal.

Quando meu maior opositor virou meu aliado na tomada de decisão

Quando chefiei uma delegacia da PF, rapidamente identifiquei um delegado que poderia ser considerado meu “opositor”. Ele não era um sabotador, nem estava agindo contra a equipe ou contra a administração em si. Simplesmente pensava de forma diferente da minha sobre como liderar a unidade. Enquanto eu tinha um estilo mais estratégico e de visão ampla, ele era mais metódico e mais rígido na gestão.

Eu poderia ignorar suas críticas e seguir com minhas decisões, afinal, a decisão sempre seria minha. Mas percebi, por instinto (não tinha estudado esses conceitos até então), que isso seria um erro. Em vez disso, decidi colocá-lo diretamente na administração, para decidir junto comigo. Frequentemente as discussões eram fortes e, em alguns momentos, bem acaloradas. Mas essa dinâmica me trouxe um presente valioso que carrego até hoje: a divergência me fez enxergar pontos que eu jamais teria visto se estivesse cercado apenas de quem pensa como eu.

Essa experiência me ensinou algo essencial: quando você desafia sua própria visão ao incluir uma perspectiva oposta e até inesperada na tomada de decisão, a decisão se torna mais robusta.

Sem saber, eu já apliquei um conceito que muitas organizações usam formalmente: o ‘décimo homem’ e o Red Teaming.

O Conceito do “Décimo Homem”

O princípio do “décimo homem” foi popularizado pelo exército israelense (e romanceado pelo filme Guerra Mundial Z) para evitar o pensamento grupal em decisões de segurança nacional. A ideia é simples:

Se nove pessoas em um comitê concordam com determinada decisão, o décimo tem a obrigação de assumir a posição contrária e argumentar contra a decisão. E isso independe de sua opinião pessoal.

Esse mecanismo força a equipe a considerar cenários adversos e evita que o grupo tome decisões precipitadas, influenciadas por viés de confirmação ou que deixem de considerar algumas possibilidades, por menores que sejam.

No ambiente corporativo, esse conceito pode ser aplicado de várias formas:

  • Nomeação de um “advogado do diabo” para questionar suposições e explorar riscos negligenciados.
  • Revisões independentes por profissionais que não participaram da formulação da estratégia.
  • Execução de análises de cenários para entender impactos e pontos cegos da decisão.

Red Teaming: sabotando a própria estratégia para fortalecê-la

O conceito de Red Teaming tem origem no setor militar e de inteligência. Ele consiste na criação de uma equipe cujo único propósito é desafiar, criticar e encontrar falhas na estratégia oficial antes que ela seja implementada.

Empresas que adotam essa abordagem no planejamento estratégico e na gestão de riscos colhem benefícios significativos:

  1. Identificação de falhas antes da execução – uma decisão pode parecer sólida na teoria, mas testá-la sob um olhar crítico pode revelar pontos frágeis.
  2. Aumento da resiliência organizacional – ao desafiar suas próprias decisões, a empresa se torna mais adaptável a mudanças e menos vulnerável a surpresas.
  3. Prevenção de viés de otimismo – muitas estratégias falham porque são construídas sob um otimismo irrealista. A função do Red Team é trazer um olhar realista, cético e até pensar como um pessimista.

Aplicando a estratégia de Sloan na prática: visão geral

A abordagem de Alfred Sloan é um precursor desses conceitos modernos. Ele entendia que decisões de impacto precisam ser testadas sob diferentes perspectivas antes de serem implementadas. Algumas práticas que podem ser adotadas para fortalecer a tomada de decisão incluem:

  1. Criar um ambiente que incentive a discordância construtiva, garantindo que todos os membros da equipe sintam-se seguros para apresentar opiniões divergentes sem receio de retaliação e delegando a um ou mais participantes o papel de “décimo homem” ou criar um time de Red Teaming para questionar a decisão.
  2. Implementar frameworks estruturados de tomada de decisão com aplicação de metodologias como análise SWOT, matriz de riscos e análise de cenários para garantir que todos os ângulos sejam explorados e como a avaliação do impacto da decisão a longo prazo e sob diferentes perspectivas e possibilidades.
  3. Evitar decisões estratégicas imediatas quando o consenso for rápido demais porque se uma decisão for unânime de forma instantânea, deve-se questionar: “O que estamos deixando de considerar?” e/ou testar a decisão com um grupo separado (Red Team) para avaliar sua robustez antes da implementação.
  4. Fomentar diversidade no time de decisão já que quanto mais diversificados forem os tomadores de decisão em termos de formação, experiência e perfis, maior será a chance de debates ricos e questionamentos relevantes.

Aplicando a Estratégia de Sloan na Prática: A Visão do Conselho

Já nos conselhos administrativos, as decisões estratégicas moldam o futuro das organizações e a ausência de discordância pode ser um perigo silencioso. Conselheiros têm a responsabilidade de desafiar suposições, questionar a robustez dos planos apresentados e garantir que a tomada de decisão não esteja sendo influenciada por viés de confirmação ou pensamento grupal.

Assim, é imperioso:

  1. Incentivar uma cultura de questionamento estratégico com os conselheiros sendo encorajados a questionar decisões sem receio de parecerem confrontadores, já que a discordância estruturada melhora a qualidade das decisões e mitiga riscos. E por que não nomear um conselheiro para atuar como “décimo homem” em reuniões críticas, desafiando consensos aparentemente unânimes?
  2. Criar um Comitê de Red Teaming para decisões estratégicas como algumas organizações já fizeram em comitês internos que testam a viabilidade de grandes decisões estratégicas antes de sua implementação e assumem um papel de opositores para identificar falhas antes que elas ocorram. Os conselhos podem utilizar especialistas externos para exercer essa função e trazer uma visão independente.
  3. Evitar a complacência no alinhamento com a diretoria executiva, garantindo que os conselheiros não atuem apenas como validadores das decisões do CEO ou da alta gestão. O conselho existe para supervisionar e questionar, para garantir que os riscos e oportunidades sejam analisados de forma objetiva e não para ser um mero “rubber-stamping board”. E, caso um plano seja apresentado sem nenhuma oposição, um bom exercício seria perguntar: “O que pode dar errado?” ou “Quais fatores poderiam tornar essa decisão desastrosa?” ou ainda, “O que não estamos considerando?”.
  4. Garantir diversidade cognitiva e de experiência no conselho já que conselhos com diversidade de experiência, com membros que trazem experiências distintas de setores variados, reduzem a tendência ao pensamento grupal e ampliam a análise crítica das decisões. Além de diversidade de gênero, raça e idade, a diversidade de pensamento e bagagem profissional deve ser incentivada para garantir que diferentes perspectivas sejam consideradas.

Conclusão

Alfred Sloan nos lembra que, quando todo mundo concorda rápido demais, algo pode ter passado despercebido. A discordância bem estruturada não é um problema, mas um sinal de maturidade organizacional.

Se todos concordam rápido demais, talvez seja o momento de adiar a decisão e questionar o que realmente está em jogo. Ao incorporar conceitos como o “décimo homem” e o Red Teaming, líderes podem desafiar suposições, identificar riscos negligenciados e fortalecer a qualidade das decisões estratégicas.

E, como aprendi na prática na Polícia Federal, quando você incorpora um pensamento divergente na tomada de decisão, pode até não ser confortável, mas quase sempre torna a decisão mais forte e certeira.

Publicado em: 19 de fevereiro de 2025 por