A falsa neutralidade das decisões “técnicas”

Por: Dercio Carvalhêda 26 de março de 2025

“Não é nada pessoal, é só uma decisão técnica.”

Poucas frases parecem tão objetivas, e tão perigosamente anestésicas.

Nas corporações, sobretudo nas esferas de governança, conselhos e comitês, essa frase costuma surgir como uma tentativa de tirar o peso moral de uma escolha difícil, bem típico de uma racionalização estruturada. Mas o que se apresenta como neutralidade técnica é, na maioria das vezes, uma forma sofisticada e falsa de evitar a responsabilidade ética da decisão.

A armadilha da neutralidade

Toda decisão envolve valores. Por mais que usemos relatórios, projeções e indicadores, alguém sempre escolhe o que priorizar. E toda priorização tem um custo, mesmo que disfarçado em planilhas. Quando se escolhe um lado, ou algo, ou alguém, abre-se mão de outro.

Em conselhos de administração, consultivos ou na liderança executiva, essa armadilha é recorrente. A linguagem técnica, às vezes, serve para mascarar decisões orientadas por conveniências, pressões políticas internas ou mesmo relações pessoais ou conflitos de interesses. Decisões que impactam pessoas, estruturas e reputações são justificadas com frases como:

• “A área técnica recomendou.”

• “O risco calculado é aceitável.”

• “Essa é a melhor prática de mercado.”

Mas o que raramente se diz é: “Essa é a escolha que decidimos sustentar, mesmo sabendo o que ela custa para os outros.” Ou seja, a verdade, a transparência.

Essa omissão, proposital ou não, não é apenas retórica. Ela enfraquece a governança.

Um conselho que se escora exclusivamente em frias análises técnicas para se proteger de conflitos éticos abre mão de sua principal função: deliberar com responsabilidade sobre o que é melhor para a organização, considerando o longo prazo, os stakeholders e os impactos que vão além do número final.

E não estou falando que a liderança da empresa deva colocá-la em segundo plano. Longe disso…

É exatamente por priorizar os interesses da empresa que a liderança precisa assumir, com transparência, as escolhas que faz. Ética, responsabilidade e compromisso com o longo prazo não são obstáculos ao resultado, são a base dele. Governança forte não evita decisões difíceis. Ela evita decisões frágeis, disfarçadas de tecnicismo falso, que corroem a confiança e o valor no tempo.

A consequência: governança fraca, decisões frágeis

Quando a responsabilidade moral é diluída sob o pretexto de neutralidade técnica, três coisas acontecem:

1. A governança se torna burocrática. O papel do conselho, da diretoria, da liderança se resume a validar pareceres e não a deliberar com profundidade. Isso está errado!

2. A cultura institucional se deteriora. Se o topo não assume valores, por que o restante da organização o faria? Tone at the top, lembram?! Isso está errado!

3. A tomada de decisão perde densidade. Decisões importantes passam a ser tomadas com base em risco formal e não em valores estruturantes. E isso também está errado!

E como resolver isso?

1. Mude o foco da pergunta. Em vez de “O que diz a análise de risco?”, pergunte: “Estamos dispostos a sustentar essa escolha diante dos seus impactos humanos, reputacionais e estratégicos?”

2. Não delegue o juízo moral ao risco técnico. Modelos de risco ajudam, mas não substituem o papel do conselheiro. Os modelos informam, mas não decidem ou deliberam.

3. Documente os valores por trás da decisão. Além do racional técnico, registre por que esse caminho foi escolhido. Isso fortalece a memória organizacional e a consistência de futuro. Seja verdadeiramente ético.

4. Exerça o papel deliberativo do conselho. Um conselho consultivo ou de administração existe para fazer perguntas incômodas, tensionar ideias e assumir escolhas ou aconselhamentos, não apenas carimbar relatórios.

E mais: como trazer mais integridade às decisões?

Reconheça que toda decisão tem um “lado humano”. Mesmo as mais técnicas. Negar isso é ignorar a complexidade do impacto que conselheiros e líderes produzem. As pessoas são a razão de ser de tudo, estão no centro do processo.

Crie espaço para o dissenso. A integridade nasce da tensão saudável entre diferentes visões e não do consenso automático travestido de objetividade. Como dizia Nelson Rodrigues: “Toda unanimidade é burra”.

Trate valores como critério, não como simples enfeite. Eles devem orientar decisões tanto quanto os números. Especialmente nas decisões difíceis. A diversidade é a mãe da eficácia em conselhos e lideranças.

Reforce a responsabilização nos processos decisórios. Quem vota, aprova ou recomenda deve estar preparado para sustentar, inclusive publicamente, o que foi decidido. Decisão ou recomendação que tem vergonha de aparecer, nunca foi certa.

O risco é ferramenta, não desculpa.

A neutralidade técnica é um mito.

E governança sem responsabilidade é só formalidade com data para ruir.

Publicado em: 26 de março de 2025 por